30.7.11

"Vi o amor nascer e ser assassinado"

Os cabelos acobreados se esparramavam como um halo ao redor da cabeça de pele clara, sardas como pequenos respingos de tinta nas maçãs do rosto, os braços delgados como ponteiros de um relógio que marcava aproximadamente meio-dia e quarenta e cinco, meia-noite e quarenta e cinco... mas não vou me enganar, o tempo não é baseado nos suspiros da menina enrolada no edredom cor-de-rosa... eram exatamente duas e vinte da madrugada e Valentina dormia; e eu... a arma estava apontada na direção daquele coraçãozinho cruel, o peito se movia com a respiração lenta de uma consciência tranquila, ou de consciência alguma. Meu dedo estava no gatilho e aquela parecia uma forma patética de dar um fim àquilo tudo. Se não patética, pelo menos fria demais, distante demais... mas teria de ser assim, enquanto Valentina dormia como um anjo. Poucos sabem o quanto assassinar um anjo pode partir o coração de uma pessoa, mas eu não poderia esperar que ela acordasse. Com aquele olhar faiscante e esverdeado me encarando, a voz doce e dissimulada gemendo algo como "minha Flora, minha flor, meu amor..." e eu não seria capaz.
Pois bem, haviam duas balas no revólver e ele estava apontado para o seu peito, não para o rosto que eu não ousaria jamais destruir. Eu a amava, eu amava Valentina como jamais seria capaz de amar a mim mesma ou a outra pessoa. Eu podia ter enlouquecido com falsa ardência daqueles beijos, mas... mas não nos enganemos, eu era mesmo uma louca, completamente insana, tentando de alguma forma dar um fim à minha loucura. 
Um murmuro, "hmm", e ela se virou de lado, eu havia perdido a mira, abaixei meu punho. Os olhos verdes se abriram , me encararam, ela sorriu:
- Flora, minha flor, meu amor, o que faz acordada ainda? Deita aqui, me abraça... faz frio.

10.7.11

Dizem que eu estou indo para o Inferno, mas o Inferno fica aqui. O Paraíso também, então por que se preocupar tanto? Quero te encontrar num boteco só pra falar de mim. Criei um universo a partir do meu ego; toma mais esse copo, se importa se eu fumar aqui? Sabe, tenho dois pulmões e um coração só. Meio avariado, faltam uns pedaços, mas ainda assim é um coração.  Já ouviu o que dizem agora, nesse século XXI? Que rezar é só um monólogo, nada mais que falar sozinha, entende? Não vejo isso como algo ruim, muito pelo contrário. Deus e o Diabo estão mesmo na minha cabeça, são coisas da mente das pessoas. O que não quer dizer que eles não existam. Pensamentos existem e em toda idéia há um enorme poder. Ah, sim. Esse Deus, esses deuses, e esse Mal, sejam lá quem forem, têm lá seu mérito em muitas coisas. Mas vamos falar de mim, está bem? Pois eu acho que há um pouco - muito, na verdade - de anjo dentro de cada demônio, e comigo não é diferente. Eu diria que sou ambivalente, e não bipolar como as pessoas têm dito com tanta naturalidade. Não gosto muito disso, não. Preferia ser só anjo ou só essa diabinha que muitas vezes tenho sido. Mas o que se pode fazer? Estamos mesmo no Inferno, insisto em dizer, ou você não sabe que "Terra" quer dizer "trevas"? Eu também não sabia, mas veja bem: o Céu fica bem aqui. Uma vida inteira, uma eternidade de paz e alegria? A danação eterna, a condenação à dor e ao sofrimento para sempre? Por favor, ambas as coisas seriam igualmente insuportáveis, acredite em mim. Você pode me chamar de blasfema ou do que quiser, mas essa é a minha pequena heresia santa.
O cigarro queima e só fica o filtro, as cinzas... a gente também é assim, não é? Toda gente como a gente é desse jeito. Pára pra pensar: uma sensação de incrível bem estar mas com um amargo trazendo alguma doença fatídica, a gente se queima, se consome, morre. É engraçado. Olha só, mais um copo não vai te fazer mal. Entenda, meu bem, que nada faz tão mal quanto um coração dolorido, então engula rápido esse anestésico, está bem? Eu coloco os pingos nos i e as tremas nos u. Sim, sou um tanto quanto antiquada. Ainda acredito que em revolução tem que ter arma e morte, ainda acredito em amor e em felizes para muito tempo - já que sempre é uma palavra tão vaga! Olha só, eu já vivi muita coisa, mas nem tanta assim. Quero viver mais uns cinquenta anos, não tempo demais... a gente morre a gente e aí descobre o que vem depois. Sei lá se acredito nessa coisa de voltar em outro corpo, mas seria bem legal. Viver é desesperador, confesso, mas é sempre bonito. O mundo, na verdade, essas trevas que são a Terra, tudo aqui é muito bonito se você for olhar direito. Você é bonito, até eu sou meio bonita! Vou fumar mais esse e falar mais de mim, e somente a segunda parte é um vício meu. Gosto de super-heróis, mas nem tanto, e tenho essa besteira de acreditar em fadas, duendes e sereias.  Sou bem boba, na verdade. Dou a cara a tapa. Sempre à favor da dominação do Id e que seja o que o meu instinto quiser.