26.2.15

valen

todo mundo diz que ela
é muito bonita e que parece ter saído
de uma tela de cinema
todo mundo diz que ela
vai se tornar uma linda moça
e que deveria calçar os sapatos
falar baixinho
comer de boca fechada
todo mundo diz que ela
daria uma bela
de uma cinderela
e que não deve correr pelos corredores


mas eu não acho que ela deva
abaixar o tom da risada
eu acho que a risada dela é uma música
eu acho que ela um dia pode ser
veterinária, artista ou contadora de histórias
eu acho que ela
pode se sujar inteirinha de água da chuva
acho que ela pode ser agricultora
médica
professora
talvez uma engenheira civil
sem se importar se ela ainda parece linda
com a camiseta manchada de tinta azul
e com os cabelos embaraçados

talvez ela goste de ver a chuva de verão caindo
talvez daqui 30 anos ela ainda sonhe
com o dia em que engoliu uma estrela
e deu um beijo bem dado
na bochecha do sol

17.2.15

zona sul

todo dia existe a chance de se viver um amor 
eu olhei aquela menina e ela
me namorou também eu sei
jazz no fone de ouvido e os ombros dela cheiravam morango 
o sol tão lindo se escondendo atrás do morro 
da vila das belezas
a ponta do cabelo dela fazia cócegas
e a gente quase se deu as mãos
você ria de mim e eu contando as
estações
te amo desde santo amaro até o capão redondo

lista negra de desejos


eu quero
beijos nas costas
garoa fina cobrindo o morro
um botão de rosa
tapioca de manhã na cama
quero fazer samba e amor até mais tarde
quero vomitar num balde todas as minhas coisas poesias
que todo mês seja fevereiro
quero que a praia invada o concreto
todos os orgasmos do mundo disposição pra pegar a condução
quero equidade e sabedoria
água da bica
um amor que seja minha melhor amiga
que assista desenhos do meu lado e esquente meus pés sem precisar de meias
quero que chegue logo a época das amoreiras
uma rua coberta de ipês
cheiro de jasmim no centro da cidade
quero fones de ouvido e chinelos de dedo uma mochila mais uma viagem
beijos de amor na minha nuca
suco de abacaxi com hortelã
uma horta e um jardim
quero paz
quero guerra pela paz

8.2.15

eu fechei as cortinas. 
nesse fim de domingo, 
só de calcinha 
quem dança comigo? 
que eu ando tão só, neguinha 
todos os meus 
amores
tem falhado 
quando o assunto é
me fazer feliz.
e não peço a ninguém 
que caminhe de mãos dadas o meu lado
até o parque até o lago ou
comprar pão na padaria do bairro 
queria apenas contar com um anjo ou algo
desse tipo, eu acho 
pra quem eu possa dizer 
"essa música né faz chorar"
e que então me ajude a
decorá-la 
com chocalhos
como um tambor, 
as batidas do seu coração 
tocam aquela música 
que me faz ter vontade 
de desligar o rádio.
argentina
paraguaya
kaiowá
africana
veio uma caravela atravessando o atlântico - portuguesa
sou um livro de História
um mapa mundi
uma tragédia
uma poesia

2.2.15

eu vivo de saudade

eu sou a prova viva de que
saudade 
envenena mas 
não mata
vai doendo devagarzinho 
feito uma agulha que se enfia aos poucos
no seu dedão do pé
o que mata é o que a gente
faz da saudade
não consigo dormir
não consigo acordar
a sobriedade também parece algo terrível
quero ficar sozinha
mas detesto a solidão
logo que noto que parei de chorar
já é motivo pra novas lágrimas
todas as músicas soam
absurdamente tristes
nessa época do ano
até mesmo cantigas de dançar ciranda
as crianças cantam
"se eu fosse um peixinho e soubesse nadar
eu tirava o meu amor lá do fundo do mar"
e puta merda!
como me dói o peito.

1.2.15

pra não dizer que eu nunca tive um grande amor eu tive sim eu tive muitos. queria um amor vindo direto de uma tela de cinema e pra não dizer que vivi um apenas eu vivenciei algumas dessas tragédias. minha primeira paixão! ah essa aí foi deliciosamente triste. não consigo dormir. "conte as bençãos" minha família me ensinou desde muito cedo, então é o que farei. eu era aquela menininha muito raivosa e não tão bonita, mas que fode bem e se permite ser levada pra casa. acendia um cigarro no outro. teve aquela noite em que sequei uma garrafa de vinho ouvindo músicas tristes no escuro. eu chorava pelada no chão do banheiro. o rímel borrado debaixo da chuva em paradas de ônibus, mochila nas costas, longas viagens com passagem só de ida. eu me lembro perfeitamente dos nomes de todas elas e de cada primeiro beijo. e como eu me contorço até hoje pensando nisso antes de dormir. com a intensidade de um veneno eu me apaixono me apaixonei me apaixonava. era como uma criança que caía, quebrava a perna e achava que nunca mais poderia correr. não faz muito tempo estávamos nós duas: nuas, sorrindo, uma ao lado da outra. era um momento tão maravilhoso e eu estava absurdamente triste, eu te disse: "você vai me deixar". ah mas todas vocês dizem a mesma coisa: não eu jamais a deixaria por uma besteira tão pequena como essa. mas a tristeza não é pequena. a tragédia é algo imenso. essa cena se tornou tão repetitiva quanto os "felizes para sempre" em contos de fadas. nunca tive outra saída a não ser romantizar aquilo que me feria. aprendi desde bem nova a engolir o choro se eu pretendesse me apaixonar, mas ele sempre escapa. só se pode se dar o direito de ser triste quando se é muito bonita. quando a gente é feia a gente tem que ser forte. não há amor que suporte os lamentos de mulheres como nós. cacete, ainda não consigo dormir. 

curupira

Meio bicho meio gente eu ainda me lembro de uma infância correndo nua por aí, os cabelos os pés enlameados, os joelhos ralados. "Feito uma selvagem", diziam, "não adianta, é o sangue de índia". Nunca fui grande fã de sapatos, me encantava pelas histórias dum caboclo que vivia no fundo do riacho e devorava os canoeiros ousados. Me jogava sem medo naquelas águas e nunca soube nadar. As perninhas magrelas da cor da canela eram tortas feito as de um curupira. Durante oito anos fui a mais feliz das crianças e acreditava que um dia seria levada por um bando de fadas pra viver num reino sem concreto e sem gente grande onde toda manhã eu beberia groselha e adormeceria no meio dos gatos. Eu nunca tive medo de trovão... pulsão de morte. Aqui a gente detesta Freud. O grandessíssimo filho de uma puta era um ressentido que adorava explicar as coisas as quais não lhe competem! Virei gente grande, que pesadelo, estou cercada de concreto. Tenho um emprego e tenho que usar sapatos. As fadas, minhas amigas, nunca vieram me buscar, não sei ao certo o porquê. Detesto groselha. Às vezes eu choro muito e bebo bastante cerveja, nunca mais tomei banho de rio, eu bêbada abraço a privada vomito vomito vomito até a bile meu deus como sou péssima. Pulsão de morte hein Freud seu tremendo imbecil. O monte de comprimidos que eu engulo dia após dia pra conviver em sociedade civilizadamente: fixação oral. Eu não quero conviver civilizadamente, vá a merda tudo isso que chamam de civilização. Me lembro bem, eu era uma SELVAGEM. Queria ser a cabocla que devora os canoeiros. Que horror o modo como as coisas funcionam, você está ali brincando de ciranda e de repente seus ossos se esticam, nos cobrem com panos que não deixam a gente correr direito, crescem pêlos pelo nosso corpo e a gente vai ficando igualzinha aquelas pessoas que só sabiam nos dizer "não". Isso é terrivelmente triste. Um dia vi minha imagem refletida no espelho e eu já tinha seios e quadris. Dei um soco na cara daquela menina estranha. Cinco cacos de vidro e nenhuma gota de sangue, o sangue escorria era entre as minhas pernas.
Quando eu ainda era uma criança, as minhas amigas mal podiam esperar pra crescer. Disseram pra elas que ser grande era muito legal. Eu? Eu nunca acreditei nessa conversa fiada.