14.8.12

Insatisfação crônica

A coitada da menina se impulsionou no balanço sem saber que ia sofrer.
O suor vira sal, o cigarro vira cinzas, o sangue coagula.
Se ela tivesse virado beata!
Se ela tivesse virado puta.
Deus, por que não aceitar que todo mundo é só humano?
Enfiava a cabeça debaixo do chuveiro e chorava. Por que tinha de ser tão feia, tão fraca, sem graça e incoerente? A gente cresce e ama. E dói. E perde. E nem vê passar. Nem dá tempo de se arrepender, nem dá tempo de pensar antes de escolher. Vezenquando se arrisca. Eu me assusto. Dá pena de ver a menina no chão, se abraçando, o grito arranhando; e tenta pôr a culpa no inatismo, no sistema, nas circunstâncias, no universo, nos astros e na ciência - mas sem acreditar.
Separa corpo e alma e depois une o dualismo: pra quê tudo isso?
Tanta sede de calma e um espírito inquieto que se desespera ao ver-se tornando acomodado.
Se nos avisassem logo no comecinho que haveria dor... estaríamos preparados?

Cicatrizes unilaterais

Amor é uma desculpa pra se machucar, eles concordaram, e a gente não quer sofrer.
Me liga quando chegar em casa pra me avisar se tá bem, ele pediu; e ela disse: tá bem, mas vou fingir que tô ótima, mesmo se eu tiver chorado a viagem inteira.
Então não vai! Eu vou te algemar em mim e você nunca mais vai embora.
Vou sim. E não volto.
Você sabe que quer me ver de novo.
Quero.
Porque você conhece Drummond e adora os Beatles e me liga a qualquer hora pra protestar contra o mundo. E porque você mantem a rua limpa e o seu coração sujo, treme a qualquer brisa e ao meu toque. Sabe minhas canções e meus livros favoritos. Me promete presentes. Faz planos. Disfarça o choro. Porque você não liga pra nada e mente pra mim tão descaradamente. Porque você diz pra mim que não vai voltar mais.
Um dia eu não vou voltar mais.
Um dia você vai se apaixonar de verdade.
Não vou!
Um dia você se dispõe a sofrer por alguém que não você.
Deus! Se tu soubesse o quanto que eu me dôo.
Se tu me deixasse saber o quanto te dói...

9.8.12

Manifestação

Está de volta. Retornam-me aquelas velhas palavras enquanto eu aguardo o momento em que a dor me anestesie: "você é uma pessoa repelente; forte, mas repelente". Um soluço. "Eu fui embora porque não pude suportar sua tristeza". O sufoco do rosto enfiado no travesseiro. A afogada.
São os pensamentos que me dizem o que fazer e como me sentir. Eles não têm voz, mas dizem. Parecem meus, mas não são. Sussurram que eu sei melhor ser sozinha. Que é mais fácil ser triste. Que a ferida amortece. Que a loucura é a solução.
Eu não quero desistir, por isso me agarro a um restinho de lucidez: um sorriso, um bom dia, um café. Quero gritar por ajuda, mas a voz não sai. Eu só faço chorar. Não seria justo pedir. Quem merece carregar nas costas o fardo de tanta perturbação que não as suas próprias? A vítima. E eu procuro a paz onde sei que há: desabo minhas angústias com palavras trêmulas no papel. Volta e meia me jogo em abraços desesperados. Meus tormentos maldizem meus sentidos, mas apenas espero que passem.
Me habituei de tal forma a conviver com meus demônios que o esforço de exorcizá-los me parece desnecessário.
Ou somente inútil.

7.8.12

Estranhamente natural

Fervo a água, côo o café, tiro do bule e despejo na xícara. Princípio do prazer, teorias freudianas, te alucino, o tempo passa, mas não vejo: você chegar ou ele passar. Mas passou, e o café ficou gelado. Parece que os meses correram, que adiantaram o relógio, que alguém arrancou as folhas do calendário. Tão rápido que eu não tive tempo de fugir. Tão forte que eu não pude parar. Ou talvez eu apenas não quis. 
Eu fechei os olhos, respirei fundo, segurei sua mão, corri o risco e pensei: "dessa vez vai ser assim." E quando olhei outra vez, o mundo era novo. Eu era outra.
Você derrubou, sem saber, muralha por muralha, e confundindo tudo aquilo que um dia eu imaginei ser minha força. Agindo às cegas, eu te queria perto e nem sabia o porquê. Me sentava ao seu lado e sorria, e eu - sempre! - falava sem parar. Você escutava, ou fingia escutar, e riu de mim ao lembrar como eu vim: perdida, inconseqüente, torta.
Me vinha o medo do sufoco do afeto. Queria fugir e chegava mais perto. E quase chorava, senhor-por-que, isso não é meu, isso não sou eu: mas era. Se você me beijava, então eu aos poucos desconstruía minhas estruturas, e de repente era possível invadir a tão antiga fortaleza holográfica que eu criei. Frágil. Quebrável. Deus, eu era só humana.
(Deus, eu não queria ser humana!)
(E de repente eu quis, quanto mais te quis por perto, e sem saber porquê.)
Eu devia saber desde o começo: estava quando eu quis me despedir direito. Estava nos poemas que eu te mostrei, nas conversas jogadas fora de madrugada e na saudade esquisita que eu senti. Definitivamente, estava quando eu te encontrei de novo. Estava quando você se deitou perto de mim e eu, por algum impulso desconhecido, quis que você me abraçasse. Estava em como tudo me pareceu estranhamente natural.
Não seria mais necessário fingir.
Você me salvou de mim mesma.

Bernardo, outra vez


Foi Bernardo quem tocou a campainha de Susanna, anos depois. Ele não se sentia nem um pouco nervoso ou desconfortável. Sentia-se confiante de que ela abriria a porta, o convidaria pra entrar, colocaria pra tocar uma música daquele tempo e permitiria que ele lesse sua mente outra vez.
E a (não tão mais) menina apareceu no portão. O sorriso estava diferente. O jeito de andar estava diferente. O cabelo, as roupas eram diferentes. Até o olhar ao vê-lo era outro: como se aquilo fosse uma surpresa estranha.
- Bernardo! – a voz não havia mudado.
- Que saudade.
- Quanto tempo.
- Dois anos, né?
- Quase três.
Ela falava como se insinuasse que aqueles quase-três-anos fossem uma vida inteira. 
- Vem, entra – Susanna estendeu o braço pra destrancar a fechadura e as cicatrizes ainda estavam lá. Talvez houvesse algumas mais. Talvez muitas. 
O rapaz a abraçou e ela correspondeu. O calor, a sensação de paz que aquilo sempre provocara também não havia mudado. Ele sentiu o cheiro de café e cigarros impregnados em sua pele, cabelos, roupas. Encarou-a por longos segundos quando se soltaram. Como se não pudesse decifrar a expressão da garota. 
E não podia.
Sentaram-se no sofá, ela nem ligou a TV, trouxe um bule com chá e desculpou-se porque não tinha nada pra comer. Podia oferecer biscoitos.
- Que formalidade é essa, Su? Parece que eu nem te conheço mais. Não sei mais nada da sua vida.
O sorriso de Susanna se desmanchou, ela encolheu os ombros.
- Nem eu da sua. 
- Logo a gente, eu pensava que ia te conhecer pra sempre.
- As pessoas não são as mesmas pra sempre.
- O sentimento é. – Eles se olharam nos olhos e Bernardo tentava, mais uma vez, sentir o que a garota sentia. Pensar o que a garota pensava. Mas ela apenas tentou disfarçar um sorrisinho de escárnio. – Não é?
Susanna não respondeu.
- Eu sempre me lembro de você. – ele insistiu.
- Então por que nunca mais veio me ver?
O rapaz se calou.
- Você sempre me lembra de quem eu era. A menininha que você conhecia como a palma da mão. Só que eu não sou mais quem eu era. E você nunca foi quem eu pensei que fosse. – ela dizia tudo isso com o sorriso tranqüilo de quem não se deixava afetar.
- Sim, você cresceu. Eu também.
- Você pode ler minha mente? – ela repetiu a velha frase, tantas vezes dita naqueles momentos em que ela tinha vontade de gritar, mas não conseguia.
Bernardo ficou em silêncio por instantes enquanto tocava o a face, os cabelos, os lábios da menina e observava, pela primeira vez em um momento daqueles, um olhar corajoso que não se enchia de lágrimas. Ela permitiu que ele o fizesse por alguns instantes, depois segurou a mão dele e afastou-a de si.
- Não. – ele respondeu – Não posso mais.
Susanna respirou fundo e encheu sua xícara de chá. Depois deu de ombros.
- Perdão. As pessoas se afastam.
- Isso não deveria acontecer com a gente. – pausa. – Né?
- É natural as pessoas se afastarem, Bernardo.
- Não nós. O que você é pra mim nunca mudou.
- O que você foi pra mim nunca existiu. Já disse, perdão. Não tem nada pra comer. Eu só posso te oferecer biscoitos. Quer que eu sirva seu chá?

4.8.12

Auto-ajuda não me basta

Acorda, prepara o café preto, corta o queijo, esfrega os olhos sonolentos com os punhos fechados, passa os dedos entre os cabelos e alimenta a utopia. Acorda do sono e sonha. Sente a chuva e louva a natureza pela delícia que é o tato. Sente o cheiro, escuta o som, olha o brilho avermelhado da luz tremeluzindo nas gotas da garoa e inala toda a positividade de um fenômeno qualquer. Tenta enxergar a música, a vibração, absorver as cores em cada um de seus nuances. Integra essa raça em extinção, que é a humana: feita de carne, osso, alma, sentidos, sangue, mente, ego e inconsciência. Abraça a humanidade e abre mão da robotização constante que tem nos tomado. Abraça o mundo que abraça você. Na perda, na morte, na dor, uma lágrima, uma lástima. Vê se não afoga tuas vísceras em pranto contido, se permite chorar. Rega as flores, menina, e anda descalça na terra (que a Terra é você, também). Ajeita os quadros, mastiga devagar, respira devagar, lê devagar; anda devagar ou corre, se tiver vontade, mas não cai na inércia. Segue em frente, apenas. E deixa que o vento componha a frente: cor, dores, delícias, afetos, tristezas e o infinito.

2.8.12

Me falta a coragem


Cortes profundos só se cicatrizam superficialmente. Os pontos abrem. É preciso limpar as feridas. Não é bonito. Dói – mas é preciso. Mais uma vez, eu tento escrever: tomo coragem e encaro o papel. Eu busco aquele velho instinto de me entregar, de desabar em lágrimas e palavras. Desenterro os sentimentos soterrados em um poço de pretensões. Mesmo que soe vago, mesmo que pareça vulgar, eu cuspo linhas tortas, sem me importar se estão certas ou não. Que me aceitem como apenas humana.
Eu me sento no chão, as mãos cobrindo o rosto, respiro fundo e o choro vem, mas as palavras não vêm. Acendo um cigarro e você não vem. É quando você não atende o celular. É quando nenhum livro me parece interessante e todas as músicas me soam vazias de sentimento. E se eu disser que me sinto incapaz, estúpida, você vai pensar que estou desesperada? Porque eu juro que estou à beira de. Não sei se duro até o fim do mês, não esse ano. Não sei se termino parágrafo, se volto pra cama, me aninho em mim mesma e desisto.
Logo eu, que tinha tanta fé, tão promissora, tão sorridente, otimista e espirituosa.
Falhar logo com você, que acreditava em toda essa babaquice que eu queria ser.
Eu não quero falhar com você.
Mas eu falhei até com essas palavras...