11.12.12

Tão maternal.


Havia ali uma rachadura no patriarcado – e estava bem
desde que os gritos
e as lágrimas
e a insegurança fossem de igual
para
igual.
Havia uma rachadura no patriarcado.
Não é uma competição! - eu devo dizer.
Não é nenhuma guerra, é só
sexo.
É a décima oitava maior luta corpo a corpo e trepamos no alto do beliche
e eu acordo suada, risonha e assustada e estranha.
Rasgo alguns papéis e ouço algumas canções.
Talvez eu nunca serei boa o bastante
(nem mesmo no alto daquele beliche).
Mas não é uma competição.
Mesmo que fosse,
eu perderia.
e você não precisa dizê-lo,
não
mesmo.

26.11.12

Com carinho, Alexia.


Dimitri,
Éramos como gatos vadios perambulando por ruas escuras. A madrugada nos pertencia, querido. Procurávamos por cerveja barata e dividíamos o mesmo maço de cigarros, tossíamos a mesma fumaça cinza, compartilhávamos de pulmões e corações apodrecidos. Liberdade não era o suficiente? Abraços fortes frente ao cheiro de maresia não eram seguros o bastante? Você precisava do sufoco de se afogar no mar, na prisão de beijos e do compromisso de um “eu te amo”. Bem, isso eu não podia lhe dar. Não com a minha inocência insana e deturpada de uma menininha triste, sentada no meio fio, empurrando comprimidos com vodca garganta abaixo, as maçãs do rosto úmidas e salgadas. Eu era imensa demais. Meu beco ainda não era quatro paredes.
Meus sequestros desprendidos não cativaram teu cativeiro, meu riso era leviano demais, minha realidade te pareceu irreal por de mais? Meu pranto plúmbeo. Pesado demais para que você suportasse. Não era algo que eu pudesse lhe pedir. Pois então que se vá.
E não diz: que gostava de mim. Não diz que me entendia, porque não. Não me diga que a vida é incerta, que hoje eu já tenho minhas certezas.
Diz que eu lhe parecia bela encrustada de lágrimas, que sente falta das bebedeiras, que a leveza te encantava. Que quase se arrependeu. E se eu fosse você, não contaria pra ninguém.
Com carinho,
Alexia.

23.10.12

(Never) love a wild thing

A chuva escorre pelos meus cabelos e maçãs como lágrimas de água doce. Meu coração troveja em soluços trêmulos. A burguesia capitalizou o amor. Estaremos fadados, caso queiramos ser livres, a ser completamente sós? Meus sapatos esmagam pequenas flores amarelas.
Meu bem, minha fé sussurra que essa calmaria não é paz. Essa união é ilusória, onde cativar se confundiu com cativeiro. Transformamos sentimento em contrato, racionalizamos o instinto. Não me obrigues a abafar meu grito, que eu só quero despencar. Pulsão de morte, meu querido, o meu princípio do prazer. E a minha deliciosa dor amiga, permita-me, por favor, não a açoite, não abafe. Meu corpo, flamejando, arranhado, punido e cansado, logo nem minha alma me pertence mais. Se a Igreja está errada, logo cada Espírito é um. Então por que não (me) aceitar?
Eu, que sempre detestei coleiras, gaiolas, jaulas ou aquários, moralismos e correntes, cegueiras e limites.
Assim.
Não é fácil amar um animal selvagem, dizem, pois estes mordem, se atiçam, fogem, voltam e se arrastam até fora da vista para morrer... e perdem toda a essência quando domesticados.

Mas (re)considere: existe sentimento mais real do que o bruto?

17.10.12

Sangue, suor e lágrimas


“Ta vendo? Não dói.” Cecília sussurrava para Cecília. Mas não era ela.
E isso realmente importava? A resposta era não.
Eram como lágrimas vermelhas que escorriam pelo ralo do banheiro. Não doía. Era um tratamento, aquilo sim, muito melhor do que as pílulas, e as gotas de placebo que obrigavam-na a engolir com todas aquelas palavras brutas, com toda aquela (ir)realidade. E a menina ia engolindo mais. E a angústia anestesiava e as veias latejavam e seus soluços faziam com que cada milímetro de seu corpo estremecesse de prazer. Sim, prazer. Não havia remédio que não causasse doença e não havia doença que não chegasse ao fim.
Que analogia bonita era o fim! E que sentimento belo era a dor quando sentida daquela maneira. Lutar pela lucidez ia a exaurindo e Cecília (mas não era ela) sussurrava em sua própria mente: vai, menina, desse jeito tudo vira poesia. Essa história não a tornava mais humana? Pois era isso que a humanidade toda sempre faz: dar murro em ponta de faca.
A cabeça enfiada embaixo do chuveiro, de olhos fechados, a pulsão de vida insiste em ofegar: “o pulso ainda pulsa, o corpo ainda é pouco”. Desejava escapar do corpo, queria fugir do mundo, que as lágrimas escorressem por todos os poros feito suor. Só acabava por doer realmente quando se debatia, como quem num redemoinho de rio gasta as energias para alcançar a superfície.
Precisava dormir.  
E quando a salvassem... ah, se a salvassem!
Como iria arder na manhã seguinte.

8.10.12

Tudo é pra sempre.

O amor que acabou,
a fumaça dissipada,
a irmã que se foi.
O cigarro que virou cinza.
As palavras ditas e
o corte que virou cicatriz.
O bebê que cresceu
- e depois ficou velho -
seus sapatinhos doados, 
e as noites de sono perdidas dos pais.
Também a criança que não nasceu
com suas lágrimas que nunca foram derramadas
a risada que não ecoou pela sala
e a parede do corredor que permaneceu livre dos riscos de giz-de-cera.
O morango devorado e
a caneca estilhaçada.
O casamento que não deu tão certo
O morto de sete e o de trezentos anos
E o vivo de oitenta -
tudo é pra sempre!


28.9.12

Como nossos pais

Despertou no meio da noite se afogando em lágrimas de terror.
Tateou pela mesa de cabeceira à procura da garrafa de uísque pela metade que ele sabia estar ali. Às cegas. Não queria acender a luz e ver-se completamente só. Mas sabia que encontrava-se submerso no vazio de seu quarto minúsculo. Claustrofóbico, insone e desesperado, buscava novas formas de negar o inegável: a cada madrugada se transformava mais um pouco em seus pais. A mãe, durante toda a juventude fora a santa boa moça pra casar, diziam, mas só durou até o próprio casamento, quando se tornou a puta degenerada que era agora. Traiu seu pai tantas vezes que os dedos das mãos não eram suficientes. Justificava dizendo que o marido era um alcoólatra infeliz,  displicente, relapso, resmungão,  preguiçoso e sem expectativa. Ele realmente o era. E também traíra a mulher, três ou quatro vezes, mas era um homem de casos, e não de noites - e nenhum dos casos ele foi capaz de manter.
Os dois ainda estavam juntos. Eles explicavam que era porque se amavam.
Aqueles pensamentos iam virando emoções, e de repente sensações quase físicas, torturantes e que pulsavam. Sentado na beirada da cama, o rapaz concentrava seus esforços em envenenar sua consciência com o que lhe restava do uísque. A lucidez parecia enlouquecedora. Do oculto, também não queria saber. Inerte, imoral e dependente. Vasculhava como que as próprias entranhas em busca de algo que fosse só seu. Que não tivesse sido herdado deles. "Música clássica!", pensou. Detestava música clássica. Os pais colocavam Mozart tocando todas as noites enquanto ele dormia, quando ele ainda era um bebê. Mas então era isso? Ele era só o que detestava, o amor que se negava a receber? Milhares de frases de auto-ajuda dizendo "seja você mesmo". Inerte, imoral e dependente. E isso ele não queria.
Sentiu o desejo de atirar em si mesmo ao lembrar-se de que seria domingo quando o sol nascesse. Já seria domingo? O almoço em família. Os pais abraçados. Porque se amavam. Juntos.
Procurou, enlouquecido, pelo interruptor.
Respirou aliviado ao constatar que estava completamente só.

27.9.12


Sufocante. Como engolir fumaça.
Os muros haviam sido derrubados, e eu, exposta naquele presente momento, via, sentia, quase tocava meu passado e também um futuro imaginário, inalava-o para dentro das minhas veias, permitindo que aquilo se refletisse em minha expressão desesperada, meio desamparada, talvez mais tarde apática. Me perguntei: mas não fora sempre eu o objeto mau, persecutório, ameaçador? Por que tão frágil agora? Tão assustada? Vulnerável? Terá sido escolha, destino ou acidente? Me tornava cada vez mais mimada, fraca, indefesa, menina, sexual, imediatista e inconsciente. Era maternal ou paternalista? Carnal ou de fé? Terreno ou misticismo? Mas já não era eu. Dissociada e, ainda assim, franca. Desprotegida, nua. 
É maravilhosa a sensação de se elevar.
O que assusta é o medo de cair.

26.9.12

Qualquer noite

Era uma cama estreita e uma noite quente. E era uma moça sem futuro, sem amor, sem confiança, sem casamento. Mas olhava para o lado e via os lábios mais bonitos que a vida já lhe permitira. E imaginava: se dali a dois ou cinco anos se esborrachasse na calçada, despencada do sétimo andar, então tudo bem. 
Em outros tempos aquele quarto estivera cheirando a sexo. Ainda antes, jasmim. Os lençóis encharcados de lágrimas. Papéis amassados pelo chão. Garrafas vazias sobre a cômoda. Não agora. A menina sorria, numa espécie calmaria até agora desconhecida. Aterrorizantemente momentânea? Aquele era seu mundo. Pacificamente invadido e desbravado. Ali estavam seus livros lidos pela metade, as fotografias, a meninice exposta, os olhos marejados de descrença e o medo de uma fé que surgia. E ela se entregava à escuta, cada toque era como que carinhosamente violento.
As cinzas iam se encrostando no fundo das canecas, e ela se aconchegava num abraço, sem estratégias, sem ao menos notar o que fazia. O hálito de café saía no riso de  criança que ela esqueceu de esconder. Esquecia de se esconder. E enquanto se mostrava, se descobria. De uma forma assustadora, deliciosamente dolorosa, sentia as paredes de um forte sendo derrubadas ao passo que ia deixando de se vigiar. 
E uma luz qualquer espreitava pelas frestas da janela

17.9.12

Paralelamente


Jordana estava sentada no muro da sacada, acendeu um cigarro e encarou os próprios pés. Abaixo deles, as pessoas riam, bebiam, dançavam e conversavam no quintal. A menina desejava estar ali, mas não estava. Seu pensamento vagando semanas no futuro ou quilômetros no espaço. Os olhos estavam marejados e as mãos tremiam, mas ela forçava um sorrisinho otimista de que tudo daria certo no ano seguinte. Hora se obrigava a parar de especular sobre outros tempos (seja passado ou futuro) e se esforçava em esquadrinhar toda aquela gente com os olhos em busca de alguém que a distraísse.
- Boa noite, o que é que você tem?
João acabara de subir até a sacada, e caminhava até ela sorrindo. Trazia nas mãos uma garrafa de vidro, cachaça envelhecida em carvalho, dois copos. Sem autorização, os encheu e furtou um cigarro da menina.
- Toma. Acho estranho te ver assim, sóbria e triste. E te perguntei o que é que você tem.
Jordana apanhou o copo da mão do rapaz e deu um gole longo, fez uma careta feia. Riu.
- Eu não sei, só... têm acontecido umas coisas. Coisas das quais eu não faço parte. Na verdade, eu nem deveria me importar, João. Nem você. Não é interessante.
Ele sentou-se ao lado dela e olhou-a por longos instantes.
- Sabe por que eu acho que você está tão triste? É esse vestido preto. Sapatos pretos. Toda de preto. Hoje é um dia em que as pessoas usam branco, olha, até eu. Pareço um pai de santo.
Jordana riu.
- Um belo pai de santo, devo dizer.
Então seu sorriso esmaeceu e ela deu de ombros, abaixou a cabeça por um instante, e logo tornou a olhar para João vestindo branco e enchendo mais uma vez os copos. Seu pensamento vagava semanas à frente e quilômetros no espaço. E retornava àquele gosto forte na boca, aquele momento desconexo que a distraía de todas as hipóteses torturantes que se formavam em sua mente – e como ela adorava distrações!
- Eu só olhei esse vestido e achei bonito.
- Isso é verdade, você está linda hoje à noite. Você já o é em todos os outros dias, mas está especialmente linda hoje. Talvez não haja problema nenhum em usar preto se for pra ficar desse jeito.
A garota revirou os olhos e riu, “ta bem”, murmurou com a voz rouca antes de acender outro cigarro; João a acompanhou, desceu do muro e estendeu a sua mão.  Jordana segurou-a e os dois se encararam. Ela não teve medo de demonstrar um olhar triste e desesperado.
- Por que não se considera mais nenhum sentimento humano? O que pode estar acontecendo agora, João? Eu não sei. Eu tenho tantos planos pro ano que vem, mas não acho que o tempo possa ser dividido assim. Por que as coisas apodrecem por dentro, por que minha vida continua acontecendo mesmo quando eu não estou por perto? Eu sei que não é importante, eu sei que eu não estou envolvida. Que se foda.
- Jordana... esquece isso. Esquece seus planos por um instante, está bem? Ainda estamos aqui. Vamos descer essas escadas, dança comigo. Deixa a sua vida acontecer aqui, onde você está. Olha só, é meia-noite.  Daqui a pouco começam os fogos. Não quebre tantas tradições assim, menina de preto. Vem, cumpra o protocolo, me dê um beijo.

13.9.12

"Tem, mas tá faltando"

O texto abaixo é um desabafo e não precisa fazer sentido NENHUM pra NINGUÉM além de mim mesma.
Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações não será mais mera coincidência.


Como naquela vez em que Dimitri foi comprar para ela uma garrafa d’água.
Laura sentou-se no meio fio. O rapaz ofereceu-se para acender seu cigarro e a abraçava e ela sorria enquanto ele ficava repetindo “meu deus, eu não pude perceber o quanto senti sua falta o mês inteiro até ver o quanto você está linda hoje à noite!”. Ela o agradecia o tempo todo por estar ali e não tê-la deixado sozinha, porque, sabe, ela precisava mesmo tomar um porre, a vida inteira não era mesmo uma merda? Todos aqueles outros caras eram uns cretinos, mas não Dimitri, ele era uma gracinha, e céus! Já passava da meia noite e ela precisava tomar os remédios.
- Não, pára! Você vai tomar os comprimidos com álcool?
- Que é que tem? Eu vivo fazendo isso, aliás eu já estou bêbada mesmo.
Sempre disseram pra ela que iria passar.
O que não contaram que é que pra isso ela faria tanta estupidez.
Não contaram que é que ela se sentiria um lixo humano, que ela se envolveria com as pessoas erradas. Não contaram que Laura teria de freqüentar treze anos de análise, praticar yoga e ciclismo. Não contaram que ela se veria dopada dentro de uma ambulância e não disseram que os médicos ririam dela não ver o vômito nas mangas do moletom.
Não contaram da falsa compaixão que não se dói da dor dos outros.
Não contaram que passaria, sim. No primeiro ônibus.

14.8.12

Insatisfação crônica

A coitada da menina se impulsionou no balanço sem saber que ia sofrer.
O suor vira sal, o cigarro vira cinzas, o sangue coagula.
Se ela tivesse virado beata!
Se ela tivesse virado puta.
Deus, por que não aceitar que todo mundo é só humano?
Enfiava a cabeça debaixo do chuveiro e chorava. Por que tinha de ser tão feia, tão fraca, sem graça e incoerente? A gente cresce e ama. E dói. E perde. E nem vê passar. Nem dá tempo de se arrepender, nem dá tempo de pensar antes de escolher. Vezenquando se arrisca. Eu me assusto. Dá pena de ver a menina no chão, se abraçando, o grito arranhando; e tenta pôr a culpa no inatismo, no sistema, nas circunstâncias, no universo, nos astros e na ciência - mas sem acreditar.
Separa corpo e alma e depois une o dualismo: pra quê tudo isso?
Tanta sede de calma e um espírito inquieto que se desespera ao ver-se tornando acomodado.
Se nos avisassem logo no comecinho que haveria dor... estaríamos preparados?

Cicatrizes unilaterais

Amor é uma desculpa pra se machucar, eles concordaram, e a gente não quer sofrer.
Me liga quando chegar em casa pra me avisar se tá bem, ele pediu; e ela disse: tá bem, mas vou fingir que tô ótima, mesmo se eu tiver chorado a viagem inteira.
Então não vai! Eu vou te algemar em mim e você nunca mais vai embora.
Vou sim. E não volto.
Você sabe que quer me ver de novo.
Quero.
Porque você conhece Drummond e adora os Beatles e me liga a qualquer hora pra protestar contra o mundo. E porque você mantem a rua limpa e o seu coração sujo, treme a qualquer brisa e ao meu toque. Sabe minhas canções e meus livros favoritos. Me promete presentes. Faz planos. Disfarça o choro. Porque você não liga pra nada e mente pra mim tão descaradamente. Porque você diz pra mim que não vai voltar mais.
Um dia eu não vou voltar mais.
Um dia você vai se apaixonar de verdade.
Não vou!
Um dia você se dispõe a sofrer por alguém que não você.
Deus! Se tu soubesse o quanto que eu me dôo.
Se tu me deixasse saber o quanto te dói...

9.8.12

Manifestação

Está de volta. Retornam-me aquelas velhas palavras enquanto eu aguardo o momento em que a dor me anestesie: "você é uma pessoa repelente; forte, mas repelente". Um soluço. "Eu fui embora porque não pude suportar sua tristeza". O sufoco do rosto enfiado no travesseiro. A afogada.
São os pensamentos que me dizem o que fazer e como me sentir. Eles não têm voz, mas dizem. Parecem meus, mas não são. Sussurram que eu sei melhor ser sozinha. Que é mais fácil ser triste. Que a ferida amortece. Que a loucura é a solução.
Eu não quero desistir, por isso me agarro a um restinho de lucidez: um sorriso, um bom dia, um café. Quero gritar por ajuda, mas a voz não sai. Eu só faço chorar. Não seria justo pedir. Quem merece carregar nas costas o fardo de tanta perturbação que não as suas próprias? A vítima. E eu procuro a paz onde sei que há: desabo minhas angústias com palavras trêmulas no papel. Volta e meia me jogo em abraços desesperados. Meus tormentos maldizem meus sentidos, mas apenas espero que passem.
Me habituei de tal forma a conviver com meus demônios que o esforço de exorcizá-los me parece desnecessário.
Ou somente inútil.

7.8.12

Estranhamente natural

Fervo a água, côo o café, tiro do bule e despejo na xícara. Princípio do prazer, teorias freudianas, te alucino, o tempo passa, mas não vejo: você chegar ou ele passar. Mas passou, e o café ficou gelado. Parece que os meses correram, que adiantaram o relógio, que alguém arrancou as folhas do calendário. Tão rápido que eu não tive tempo de fugir. Tão forte que eu não pude parar. Ou talvez eu apenas não quis. 
Eu fechei os olhos, respirei fundo, segurei sua mão, corri o risco e pensei: "dessa vez vai ser assim." E quando olhei outra vez, o mundo era novo. Eu era outra.
Você derrubou, sem saber, muralha por muralha, e confundindo tudo aquilo que um dia eu imaginei ser minha força. Agindo às cegas, eu te queria perto e nem sabia o porquê. Me sentava ao seu lado e sorria, e eu - sempre! - falava sem parar. Você escutava, ou fingia escutar, e riu de mim ao lembrar como eu vim: perdida, inconseqüente, torta.
Me vinha o medo do sufoco do afeto. Queria fugir e chegava mais perto. E quase chorava, senhor-por-que, isso não é meu, isso não sou eu: mas era. Se você me beijava, então eu aos poucos desconstruía minhas estruturas, e de repente era possível invadir a tão antiga fortaleza holográfica que eu criei. Frágil. Quebrável. Deus, eu era só humana.
(Deus, eu não queria ser humana!)
(E de repente eu quis, quanto mais te quis por perto, e sem saber porquê.)
Eu devia saber desde o começo: estava quando eu quis me despedir direito. Estava nos poemas que eu te mostrei, nas conversas jogadas fora de madrugada e na saudade esquisita que eu senti. Definitivamente, estava quando eu te encontrei de novo. Estava quando você se deitou perto de mim e eu, por algum impulso desconhecido, quis que você me abraçasse. Estava em como tudo me pareceu estranhamente natural.
Não seria mais necessário fingir.
Você me salvou de mim mesma.

Bernardo, outra vez


Foi Bernardo quem tocou a campainha de Susanna, anos depois. Ele não se sentia nem um pouco nervoso ou desconfortável. Sentia-se confiante de que ela abriria a porta, o convidaria pra entrar, colocaria pra tocar uma música daquele tempo e permitiria que ele lesse sua mente outra vez.
E a (não tão mais) menina apareceu no portão. O sorriso estava diferente. O jeito de andar estava diferente. O cabelo, as roupas eram diferentes. Até o olhar ao vê-lo era outro: como se aquilo fosse uma surpresa estranha.
- Bernardo! – a voz não havia mudado.
- Que saudade.
- Quanto tempo.
- Dois anos, né?
- Quase três.
Ela falava como se insinuasse que aqueles quase-três-anos fossem uma vida inteira. 
- Vem, entra – Susanna estendeu o braço pra destrancar a fechadura e as cicatrizes ainda estavam lá. Talvez houvesse algumas mais. Talvez muitas. 
O rapaz a abraçou e ela correspondeu. O calor, a sensação de paz que aquilo sempre provocara também não havia mudado. Ele sentiu o cheiro de café e cigarros impregnados em sua pele, cabelos, roupas. Encarou-a por longos segundos quando se soltaram. Como se não pudesse decifrar a expressão da garota. 
E não podia.
Sentaram-se no sofá, ela nem ligou a TV, trouxe um bule com chá e desculpou-se porque não tinha nada pra comer. Podia oferecer biscoitos.
- Que formalidade é essa, Su? Parece que eu nem te conheço mais. Não sei mais nada da sua vida.
O sorriso de Susanna se desmanchou, ela encolheu os ombros.
- Nem eu da sua. 
- Logo a gente, eu pensava que ia te conhecer pra sempre.
- As pessoas não são as mesmas pra sempre.
- O sentimento é. – Eles se olharam nos olhos e Bernardo tentava, mais uma vez, sentir o que a garota sentia. Pensar o que a garota pensava. Mas ela apenas tentou disfarçar um sorrisinho de escárnio. – Não é?
Susanna não respondeu.
- Eu sempre me lembro de você. – ele insistiu.
- Então por que nunca mais veio me ver?
O rapaz se calou.
- Você sempre me lembra de quem eu era. A menininha que você conhecia como a palma da mão. Só que eu não sou mais quem eu era. E você nunca foi quem eu pensei que fosse. – ela dizia tudo isso com o sorriso tranqüilo de quem não se deixava afetar.
- Sim, você cresceu. Eu também.
- Você pode ler minha mente? – ela repetiu a velha frase, tantas vezes dita naqueles momentos em que ela tinha vontade de gritar, mas não conseguia.
Bernardo ficou em silêncio por instantes enquanto tocava o a face, os cabelos, os lábios da menina e observava, pela primeira vez em um momento daqueles, um olhar corajoso que não se enchia de lágrimas. Ela permitiu que ele o fizesse por alguns instantes, depois segurou a mão dele e afastou-a de si.
- Não. – ele respondeu – Não posso mais.
Susanna respirou fundo e encheu sua xícara de chá. Depois deu de ombros.
- Perdão. As pessoas se afastam.
- Isso não deveria acontecer com a gente. – pausa. – Né?
- É natural as pessoas se afastarem, Bernardo.
- Não nós. O que você é pra mim nunca mudou.
- O que você foi pra mim nunca existiu. Já disse, perdão. Não tem nada pra comer. Eu só posso te oferecer biscoitos. Quer que eu sirva seu chá?

4.8.12

Auto-ajuda não me basta

Acorda, prepara o café preto, corta o queijo, esfrega os olhos sonolentos com os punhos fechados, passa os dedos entre os cabelos e alimenta a utopia. Acorda do sono e sonha. Sente a chuva e louva a natureza pela delícia que é o tato. Sente o cheiro, escuta o som, olha o brilho avermelhado da luz tremeluzindo nas gotas da garoa e inala toda a positividade de um fenômeno qualquer. Tenta enxergar a música, a vibração, absorver as cores em cada um de seus nuances. Integra essa raça em extinção, que é a humana: feita de carne, osso, alma, sentidos, sangue, mente, ego e inconsciência. Abraça a humanidade e abre mão da robotização constante que tem nos tomado. Abraça o mundo que abraça você. Na perda, na morte, na dor, uma lágrima, uma lástima. Vê se não afoga tuas vísceras em pranto contido, se permite chorar. Rega as flores, menina, e anda descalça na terra (que a Terra é você, também). Ajeita os quadros, mastiga devagar, respira devagar, lê devagar; anda devagar ou corre, se tiver vontade, mas não cai na inércia. Segue em frente, apenas. E deixa que o vento componha a frente: cor, dores, delícias, afetos, tristezas e o infinito.

2.8.12

Me falta a coragem


Cortes profundos só se cicatrizam superficialmente. Os pontos abrem. É preciso limpar as feridas. Não é bonito. Dói – mas é preciso. Mais uma vez, eu tento escrever: tomo coragem e encaro o papel. Eu busco aquele velho instinto de me entregar, de desabar em lágrimas e palavras. Desenterro os sentimentos soterrados em um poço de pretensões. Mesmo que soe vago, mesmo que pareça vulgar, eu cuspo linhas tortas, sem me importar se estão certas ou não. Que me aceitem como apenas humana.
Eu me sento no chão, as mãos cobrindo o rosto, respiro fundo e o choro vem, mas as palavras não vêm. Acendo um cigarro e você não vem. É quando você não atende o celular. É quando nenhum livro me parece interessante e todas as músicas me soam vazias de sentimento. E se eu disser que me sinto incapaz, estúpida, você vai pensar que estou desesperada? Porque eu juro que estou à beira de. Não sei se duro até o fim do mês, não esse ano. Não sei se termino parágrafo, se volto pra cama, me aninho em mim mesma e desisto.
Logo eu, que tinha tanta fé, tão promissora, tão sorridente, otimista e espirituosa.
Falhar logo com você, que acreditava em toda essa babaquice que eu queria ser.
Eu não quero falhar com você.
Mas eu falhei até com essas palavras...

29.7.12


Ainda não era meia noite e Jordana pensava, sentada na mureta da sacada. Pensava idéias mudas (veja bem, não apenas silenciosas, mas mudas) e enviava aos céus preces enfraquecidas de que pudesse unir dois tempos, dois lugares, mil pessoas. Anos e anos desejando algum tipo de amor onipresente e agora, meu Deus, agora meus centavos estavam contados, agora o ano estava quase no fim, um turbilhão de sensações gélidas a faziam tremer da mente as pontas dos dedos. Com as duas mãos segurava um copo cheio de cachaça envelhecida em carvalho, forçava um sorriso, dava um gole pequeno – é claro, meu bem, pode pegar o cigarro que está aí – olhava o céu, suspirava. Se era o Lennon cantando no fundo? Se queria dançar? Pois bem. Somos tão jovens e ainda e cedo.Tão jovem, tão cedo, e havia tanta música, tanta dança, tanta droga, tanta risada e havia que Jordana se isolava, sentada na mureta da sacada. Pois dançasse com ou sem lágrimas nos cantos dos olhos, com ou sem chumbo no espírito, que terminasse logo aquela dose e cessasse de aguardar a resposta das preces. Há muito os anos dourados ficaram pra trás e ela sabia. O que lhe doía tanto, afinal, era saber que tudo aquilo era a sombra de uma nuvem passageira, e ela queria mais.
Fechou os olhos. “Vamos, vamos dançar” 

17.5.12

Despreparo corrosivo



Acordou e optou por não olhar as horas. Medo de se sentir culpada, ou por dormir demais, ou por dormir muito pouco. Na cama, acendeu um cigarro, apanhou o café que restava da madrugada passada e despejou no estômago. Frio, amargo. Como o vento lá fora. O clima ardente fazia com que as cicatrizes pulsassem. Tudo ardia e Johanna apertou os olhos com força. Era domingo, mas pouca ou nenhuma diferença isso fazia. Já há dias que ela mal deixava o quarto, ia até a cozinha, comia uma maçã e voltava para debaixo das cobertas. Às vezes enfrentava a rua pra comprar um maço novo, forçava um sorriso para o padeiro. Bom dia. Eram cinco e meia da tarde, mas bom dia. As cicatrizes mais recentes iam se tornando cor-de-rosa-claro e ela mal suportava olhá-las. Ela já sabia que isso aconteceria desde o final do último verão. A nuvem negra que se formava em suas veias vinha crescendo, mas não existiam muitas responsabilidades naqueles tempos, nunca existiram, então devia ser coisa pouca.
Se lhe batiam à porta, fingia dormir. Os que vinham visitar não estavam realmente preocupados; era apenas curiosidade. Vinham saber qual o motivo de tudo aquilo. Por que diabos ela não respondia mais as mensagens. Não atendia as ligações. Pois se alguém fizesse uma visita lhe trazendo o motivo, Johanna ficaria grata. Não sabia. Não sabia o porquê de uma rotina tão leve lhe doer desse jeito, ou de um pouco de peso a mais lhe causar tanto sufoco. Só o que ela sabia é que não estava pronta.
Se alguém entrasse sem bater... invadisse seu quarto, seu corpo, sua alma, sua vida com preocupações e cuidados sinceros, lhe acariciasse os cortes, ficasse em silêncio e a escutasse sem achar graça.  Suspirou.
Involuntariamente, com o canto dos olhos, vislumbrou o relógio. Quatro da tarde – desperdiçava a vida dentro do quarto e não havia nada que ninguém pudesse fazer. A não ser, é claro, invadir. Riu-se da idéia. Amassou a ponta do cigarro no cinzeiro e deitou-se novamente. Não havia nada que ninguém pudesse fazer.

3.5.12

Tudo está bem.


Não precisa cavar muito fundo pra ver que foi desperto aquele lado antes adormecido. Frágil, delicado, assustado. A louca, corajosa, inconseqüente, ainda está lá, em algum lugar. Mas foi desconstruída a fortaleza holográfica que eu me esforcei tanto pra projetar. E o pior é que eu não ligo tanto quanto deveria. Me sento na janela pra olhar as estrelas, acender um cigarro, ouvir aquela música. Eu sinto o medo. Agora eu enxergo a neblina encobrindo o futuro. Percorrem minhas veias, vertentes de riso, de lágrimas, de sangue quente que tanto deixei escorrer. A auto-destruição, obviamente, sempre atrai. Mas agora, mesmo assim, desejando tanto algo que me faça bem. Me permito sentir a saudade e me permito expelir isso que pulsa forte a semana inteira. Às vezes, todas as noites são noites solitárias de domingo. E tanto nos finais de tarde quentes quanto nos envoltos pelo vento gelado, eu queria que você estivesse aqui. Mesmo que pra não fazer nada, um café, uma cerveja, música, cigarros, filmes e tudo isso que eu poderia fazer sozinha.
E por acaso foi encontrada escancarada a desordem que eu sou, e é verdade que eu ainda me envergonho do caos contido que ainda me resta, das cicatrizes que ficaram. É verdade que existem os tremores e os dramas e as lágrimas derramadas sem sentido, os vícios e manias e rascunhos escondidos, as pequenas tempestades cinematográficas, as angústias infundadas. Mas, meu bem, também é verdade que há essa paz que vem me vindo aos poucos e com ímpeto, que eu sorrio sozinha ao me lembrar de despertares, e que por causa disso eu venho me desapegando de tanta insegurança. Eu só preciso de um abraço forte. E por enquanto, eu juro, está tudo bem.

12.4.12

Eu não quero falar sempre da rotina monótona e repetitiva. Mas é inevitável que se repitam os mesmos caminhos sujos, e é inevitável que eu venha saber que estamos ainda bem no meio da semana por causa da data no quadro-negro; e eu mal posso evitar fazer para a minha analista as mesmas reclamações de não saber organizar meu tempo, meu dinheiro, arrumar minha cama de manhã, as mesmas reclamações de que os planetas não se alinham na minha vida. E enquanto Freud explica as coisas, e enquanto a dialética se transforma na correnteza do rio, e eu, pobre de mim, devorando palavras desconhecidas, apertando os olhos na neblina e engolindo meu café rápido, antes que esfrie; enquanto meus olhos ficam pesados e a cabeça fica pesada e o clima fica pesado e as pessoas ficam chatas e o céu fica sujo e os dias difíceis, eu só aguardo que os sinos toquem. Apertando o passo debaixo de um sol ardido, largando as pontas de cigarro pelo caminho, só esperando pra deitar numa grama qualquer e fingir: que as horas não passam, que o amanhã não chega, que as responsabilidades não existem, e fingir, afinal, que não precisamos fingir. Correr pra olhar uma lua linda, enorme, clara, que ilumine todos nós e que os sorrisos sejam visíveis. Deita aqui pertinho. Deixa eu dar um meus closes, enquadrar minhas cenas, gravar minhas imagens pra poder lembrar tudo de novo, por favor, pra que haja alguma beleza nesse dia-a-dia chato que eu preciso inventar toda manhã. Deixa o vento gelado soprar, deixa o sol chegar sem pressa. Finge que o mundo inteiro congelou na madrugada e a gente pode conversar sem medo, finge que não existe medo. Finge que o ponteiro do relógio de domingo fica parado eternamente às cinco e quinze da tarde, antes que eu feche os olhos. Porque logo chega a segunda-feira e chega a saudade, e chega a distância e tudo vira lembrança. E na segunda-feira se repetem os mesmos caminhos sujos, quadros-negros, reclamações, camas solitárias e desarrumadas, planetas desalinhados. E Freud fica explicando as coisas que eu não consigo entender.

13.3.12

Que sufoque então

E eu
quebro
queimo
apago o cigarro
derrubo
ofego 
arranho
rasgo
machuco
sussurro
suspiro,
trêmula,
espalho as tremas
os pingos nos is eu
esqueço - às vezes -
e os cortes nos tês.


Que sufoque, então
os abraços
os afagos
as lágrimas, 
que afoguem.
Que sufoquem, então, os afetos.


Que soterre, então
o controle
a atenção
Que desabe
- devagarzinho -
O céu.

8.3.12

Baú de nostalgias

Garrafas vazias na pia da cozinha, eu escavo minhas cicatrizes em busca de um baú de nostalgias. Tremor e vento gélido. Lágrimas caídas no meio fio e o riso flutua sobre a correnteza do rio. Sem culpa do tempo perdido, dos atos falhos, por abrir o portão despenteada e com a cara amassada de sono, aquelas páginas amassadas por descuido, feridas que eu expus por confiança. Bobagem. Eu me faço, assim, de cinzeiro humano, e não é sem dor que deixam suas impressões em mim. Mas há afeto, eu sei. Há calor. Há um certo prazer em estar ali, jogada na calçada como uma sem teto, esperando o próximo ônibus, voltando pra casa com um sorriso largo no rosto e um cansaço pesado por todo o corpo. Que seja dessa forma, então. Que venha. Que fique. Que parta, como tantos partiram – e vai ser longo, e vai ser doído, logo pra mim, que sou tão agarrada a uns pequenos detalhes da rotina. Mas eu repito, por favor, que fique. Pelo menos o bastante pra que eu junte essas memórias do café que esfriou, do incenso que ficou pela metade, das cinzas que se espalharam pela sacada. Eu quero lembrar. Eu quero não pregar os olhos nas noites quentes de insônia e ficar sentida com fotografias mentais. Logo eu, meu Deus, que sou movida pelas pequenas paixões, que vivo rezando pros céus pra que ninguém se fira – mas é tudo mentira. É na ferida que eu enterro o meu baú de nostalgias.

28.2.12

Pequena ode ao cansaço

Tontura,
Cansaço,
Fraqueza,
Exaustão,
Os dedos, as unhas, fincados no colchão
E eu
Desabo
No meio-fio
Na beirada da cama.
Três bules de café.
Duas cenas de filme.
E enquanto eu corro,
As pernas bambas,
Eu me morro,
Tremor.
E escorre sangue
[me corta um sorriso]
Suor e lágrimas
E caem
A pressão
Fecham-se os olhos,
O riso me escapa.
Sem jamais adormecer
Levanto
Imersa na ofegante, dolorosa, gratificante canseira.
Jamais desperta.

26.2.12

Cinzas de carnaval

O café já esfriava e dois cigarros queimavam sozinhos, abandonados no cinzeiro. Havia o cheiro da chuva, do suor, a fumaça, o barulho do vento, os múrmuros e os gemidos, a paranóia que pairava. Mas a faxina será feita na segunda, serão trocados os lençóis, jogadas fora as cinzas, dobradas e guardadas as roupas, lavadas as canecas. E os pensamentos ficariam. Um pensamento meio assim, afoito, desesperado que me entala na garganta quando cogito pôr pra fora. E é preciso que se mastigue bem as lembranças dos momentos pra que elas não me fiquem presas também e se repetindo. É um tal de ter tanto pra falar, mas não me parecer que haja interesse algum em ouvir. Então eu sorria. E suspirava. E me aconchegava em uns braços, repetindo mentalmente tudo o que há pra ser dito, desejosa e ao mesmo tempo receosa de algo meio telepático. Que pudessem ouvir que eu geralmente não sou dessas meninas que andam de mãos dadas, que como-é-bom-acordar-desse-jeito, que eu sou vulnerável, insegura, maluca, medrosa, inconseqüente, impulsiva, ou mesmo que às vezes eu me sinto tão bem que assusta e eu aí sinto vontade de fugir. E querer escutar "não, fica". 
Mas nada disso importa agora. A fumaça sai pela janela. As sensações são boas, e tudo bem guardá-las dentro de mim agora. Que tudo se exploda em uma respiração ofegante, olhos e lábios vertentes de riso e lágrima. O carnaval vira cinza no chão... mas a faxina será feita na segunda.

9.2.12

Pedaço de Agosto

Sinto Agosto se aproximar. Em dias quentes assim, ele caminha em passos curtos e rápidos, e eu posso me observar sentada na calçada, engasgando com as lágrimas e a fumaça. Posso ver as noites de sexta trancafiada em casa, oscilando entre considerar as giletes  e uma auto-piedade patética. Ah, sim, Agosto. Os - não-bastam-trinta-mas-trinta-e-um-dias de desgosto, tremor, medicação dobrada, morcegos no estômago e vinho barato, as falsas promessas de "estarei aqui", pensamentos demais e oficina do diabo mesmo assim. Eu sinto na ponta da língua o sabor e sinto as cicatrizes avisando como quando avisam se vai chover. 
É um daqueles dias de presságio em que meu reflexo na vitrine fala: vou ser abandonada e não vou conseguir dormir e vou comer demais e vomitar demais e fumar demais, e todos os dias vou olhar o calendário, rezando para que o cachorro louco vá embora - mas ele insiste em ficar um pouquinho mais.
E eu procuro refúgio em conversas jogadas fora com desconhecidos, finais de tardes vadios e na lua cheia que já não me parece tão mais linda e já não vem mais me dizer do amor. Escrevo e a feiura não sai. As palavras estão entaladas nas veias cavas. Mas ainda é verão. O suor escorre, o café não esfria nunca, o cigarro apaga e eu ainda sou tão jovem. Tantos meses e tanta dor a serem ignorados. É só outro presságio. Ainda há tempo para ser forte.

1.2.12

(NÃO) PERTURBE

E se - por acaso - você entrar sem bater e me pegar no pulo? Vai encontrar os fundos das canecas borrados de chá e de café, vai me encontrar enquanto visto meu sorriso mais desprendido e escondo as tralhas no armário, enquanto internizo e organizo minhas desordens. E se encontrar os filmes pausados, os livros que eu li pela metade e as discografias que eu fiquei de ouvir e nunca terminei, e se. E se você entrar sem bater e vir que eu ainda escondo os medos debaixo da cama? Entrar sem bater e encontrar meu peito escancarado e – deus que me livre! – enxergar lá dentro toda a angústia nele instalada, descobrir minhas veias entupidas de paranóia. Enquanto eu troco os lençóis e rasgo as páginas de rascunho que eu deixei pela metade. E se, e quando descobrir que eu me agarro aos meus temores, que me habituei aos meus tremores, que eu deságuo em lágrimas nas noites de tédio, que teço teias de tramas e dramas nas horas de solidão? Vai encontrar os cabelos cortados pelo chão, os frascos de remédios em cima da cômoda, as lâminas que ainda estão ali guardadas (só para o caso de); e quando? Se souber que revivo romances e me engano por pouco e que fujo e que volto e tropeço vezenquando mesmo sabendo das pedras no caminho... Também há meu desamor-próprio, há que eu preciso sempre de um abraço forte, que todo mês de Agosto eu me afogo nas tempestades em garrafas de cerveja e que nesses tempos minhas cicatrizes doem. E se você entrar sem bater? E se alguém entrar sem bater, meu Deus, e dar de cara ali com toda a minha demência, minha farsa, e toda emoção que eu escolho não mostrar? Vai fechar a porta, recomeçar, fingir que não viu nada e bater? Deixar tudo aberto e correr? Queira o céu que esse dia seja bem vindo. Queira o céu que você entre e me ajude a limpar a alma. Queira o céu.