28.9.12

Como nossos pais

Despertou no meio da noite se afogando em lágrimas de terror.
Tateou pela mesa de cabeceira à procura da garrafa de uísque pela metade que ele sabia estar ali. Às cegas. Não queria acender a luz e ver-se completamente só. Mas sabia que encontrava-se submerso no vazio de seu quarto minúsculo. Claustrofóbico, insone e desesperado, buscava novas formas de negar o inegável: a cada madrugada se transformava mais um pouco em seus pais. A mãe, durante toda a juventude fora a santa boa moça pra casar, diziam, mas só durou até o próprio casamento, quando se tornou a puta degenerada que era agora. Traiu seu pai tantas vezes que os dedos das mãos não eram suficientes. Justificava dizendo que o marido era um alcoólatra infeliz,  displicente, relapso, resmungão,  preguiçoso e sem expectativa. Ele realmente o era. E também traíra a mulher, três ou quatro vezes, mas era um homem de casos, e não de noites - e nenhum dos casos ele foi capaz de manter.
Os dois ainda estavam juntos. Eles explicavam que era porque se amavam.
Aqueles pensamentos iam virando emoções, e de repente sensações quase físicas, torturantes e que pulsavam. Sentado na beirada da cama, o rapaz concentrava seus esforços em envenenar sua consciência com o que lhe restava do uísque. A lucidez parecia enlouquecedora. Do oculto, também não queria saber. Inerte, imoral e dependente. Vasculhava como que as próprias entranhas em busca de algo que fosse só seu. Que não tivesse sido herdado deles. "Música clássica!", pensou. Detestava música clássica. Os pais colocavam Mozart tocando todas as noites enquanto ele dormia, quando ele ainda era um bebê. Mas então era isso? Ele era só o que detestava, o amor que se negava a receber? Milhares de frases de auto-ajuda dizendo "seja você mesmo". Inerte, imoral e dependente. E isso ele não queria.
Sentiu o desejo de atirar em si mesmo ao lembrar-se de que seria domingo quando o sol nascesse. Já seria domingo? O almoço em família. Os pais abraçados. Porque se amavam. Juntos.
Procurou, enlouquecido, pelo interruptor.
Respirou aliviado ao constatar que estava completamente só.

27.9.12


Sufocante. Como engolir fumaça.
Os muros haviam sido derrubados, e eu, exposta naquele presente momento, via, sentia, quase tocava meu passado e também um futuro imaginário, inalava-o para dentro das minhas veias, permitindo que aquilo se refletisse em minha expressão desesperada, meio desamparada, talvez mais tarde apática. Me perguntei: mas não fora sempre eu o objeto mau, persecutório, ameaçador? Por que tão frágil agora? Tão assustada? Vulnerável? Terá sido escolha, destino ou acidente? Me tornava cada vez mais mimada, fraca, indefesa, menina, sexual, imediatista e inconsciente. Era maternal ou paternalista? Carnal ou de fé? Terreno ou misticismo? Mas já não era eu. Dissociada e, ainda assim, franca. Desprotegida, nua. 
É maravilhosa a sensação de se elevar.
O que assusta é o medo de cair.

26.9.12

Qualquer noite

Era uma cama estreita e uma noite quente. E era uma moça sem futuro, sem amor, sem confiança, sem casamento. Mas olhava para o lado e via os lábios mais bonitos que a vida já lhe permitira. E imaginava: se dali a dois ou cinco anos se esborrachasse na calçada, despencada do sétimo andar, então tudo bem. 
Em outros tempos aquele quarto estivera cheirando a sexo. Ainda antes, jasmim. Os lençóis encharcados de lágrimas. Papéis amassados pelo chão. Garrafas vazias sobre a cômoda. Não agora. A menina sorria, numa espécie calmaria até agora desconhecida. Aterrorizantemente momentânea? Aquele era seu mundo. Pacificamente invadido e desbravado. Ali estavam seus livros lidos pela metade, as fotografias, a meninice exposta, os olhos marejados de descrença e o medo de uma fé que surgia. E ela se entregava à escuta, cada toque era como que carinhosamente violento.
As cinzas iam se encrostando no fundo das canecas, e ela se aconchegava num abraço, sem estratégias, sem ao menos notar o que fazia. O hálito de café saía no riso de  criança que ela esqueceu de esconder. Esquecia de se esconder. E enquanto se mostrava, se descobria. De uma forma assustadora, deliciosamente dolorosa, sentia as paredes de um forte sendo derrubadas ao passo que ia deixando de se vigiar. 
E uma luz qualquer espreitava pelas frestas da janela

17.9.12

Paralelamente


Jordana estava sentada no muro da sacada, acendeu um cigarro e encarou os próprios pés. Abaixo deles, as pessoas riam, bebiam, dançavam e conversavam no quintal. A menina desejava estar ali, mas não estava. Seu pensamento vagando semanas no futuro ou quilômetros no espaço. Os olhos estavam marejados e as mãos tremiam, mas ela forçava um sorrisinho otimista de que tudo daria certo no ano seguinte. Hora se obrigava a parar de especular sobre outros tempos (seja passado ou futuro) e se esforçava em esquadrinhar toda aquela gente com os olhos em busca de alguém que a distraísse.
- Boa noite, o que é que você tem?
João acabara de subir até a sacada, e caminhava até ela sorrindo. Trazia nas mãos uma garrafa de vidro, cachaça envelhecida em carvalho, dois copos. Sem autorização, os encheu e furtou um cigarro da menina.
- Toma. Acho estranho te ver assim, sóbria e triste. E te perguntei o que é que você tem.
Jordana apanhou o copo da mão do rapaz e deu um gole longo, fez uma careta feia. Riu.
- Eu não sei, só... têm acontecido umas coisas. Coisas das quais eu não faço parte. Na verdade, eu nem deveria me importar, João. Nem você. Não é interessante.
Ele sentou-se ao lado dela e olhou-a por longos instantes.
- Sabe por que eu acho que você está tão triste? É esse vestido preto. Sapatos pretos. Toda de preto. Hoje é um dia em que as pessoas usam branco, olha, até eu. Pareço um pai de santo.
Jordana riu.
- Um belo pai de santo, devo dizer.
Então seu sorriso esmaeceu e ela deu de ombros, abaixou a cabeça por um instante, e logo tornou a olhar para João vestindo branco e enchendo mais uma vez os copos. Seu pensamento vagava semanas à frente e quilômetros no espaço. E retornava àquele gosto forte na boca, aquele momento desconexo que a distraía de todas as hipóteses torturantes que se formavam em sua mente – e como ela adorava distrações!
- Eu só olhei esse vestido e achei bonito.
- Isso é verdade, você está linda hoje à noite. Você já o é em todos os outros dias, mas está especialmente linda hoje. Talvez não haja problema nenhum em usar preto se for pra ficar desse jeito.
A garota revirou os olhos e riu, “ta bem”, murmurou com a voz rouca antes de acender outro cigarro; João a acompanhou, desceu do muro e estendeu a sua mão.  Jordana segurou-a e os dois se encararam. Ela não teve medo de demonstrar um olhar triste e desesperado.
- Por que não se considera mais nenhum sentimento humano? O que pode estar acontecendo agora, João? Eu não sei. Eu tenho tantos planos pro ano que vem, mas não acho que o tempo possa ser dividido assim. Por que as coisas apodrecem por dentro, por que minha vida continua acontecendo mesmo quando eu não estou por perto? Eu sei que não é importante, eu sei que eu não estou envolvida. Que se foda.
- Jordana... esquece isso. Esquece seus planos por um instante, está bem? Ainda estamos aqui. Vamos descer essas escadas, dança comigo. Deixa a sua vida acontecer aqui, onde você está. Olha só, é meia-noite.  Daqui a pouco começam os fogos. Não quebre tantas tradições assim, menina de preto. Vem, cumpra o protocolo, me dê um beijo.

13.9.12

"Tem, mas tá faltando"

O texto abaixo é um desabafo e não precisa fazer sentido NENHUM pra NINGUÉM além de mim mesma.
Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações não será mais mera coincidência.


Como naquela vez em que Dimitri foi comprar para ela uma garrafa d’água.
Laura sentou-se no meio fio. O rapaz ofereceu-se para acender seu cigarro e a abraçava e ela sorria enquanto ele ficava repetindo “meu deus, eu não pude perceber o quanto senti sua falta o mês inteiro até ver o quanto você está linda hoje à noite!”. Ela o agradecia o tempo todo por estar ali e não tê-la deixado sozinha, porque, sabe, ela precisava mesmo tomar um porre, a vida inteira não era mesmo uma merda? Todos aqueles outros caras eram uns cretinos, mas não Dimitri, ele era uma gracinha, e céus! Já passava da meia noite e ela precisava tomar os remédios.
- Não, pára! Você vai tomar os comprimidos com álcool?
- Que é que tem? Eu vivo fazendo isso, aliás eu já estou bêbada mesmo.
Sempre disseram pra ela que iria passar.
O que não contaram que é que pra isso ela faria tanta estupidez.
Não contaram que é que ela se sentiria um lixo humano, que ela se envolveria com as pessoas erradas. Não contaram que Laura teria de freqüentar treze anos de análise, praticar yoga e ciclismo. Não contaram que ela se veria dopada dentro de uma ambulância e não disseram que os médicos ririam dela não ver o vômito nas mangas do moletom.
Não contaram da falsa compaixão que não se dói da dor dos outros.
Não contaram que passaria, sim. No primeiro ônibus.