27.2.13

Caixa de Pandora

Não gostava do modo como aquilo a atingia. Não era gradual. Não havia aviso prévio. Era como se ela sorrisse e, de repente - bofetada. Tremia. Não havia nome para aquela sensação: não se chamava tristeza, não se chamava angústia. Raiva, também não era. Tudo isso Lúcia já conhecia. Era seu espírito que se enregelava e a febre queimando o pescoço. A dor se espalhava pelos membros. Endureciam. Lágrimas ferviam. Pensamentos pulsantes, desespero correndo as veias, o caos bloqueando a garganta. Desabava, cedia, amaldiçoava. Eram sôfregos, os soluços. Estava vulnerável como uma criança doente.
E ela empurrava para dentro todas as pílulas que pudessem anestesiá-la. Ou anestesiar esse bicho, que Lúcia tinha medo de pensar se era parte dela ou não. "Pare, por favor, pare. O que quer que seja que mora em mim, vai embora."  Golpeava o ar. Golpearia pessoas. Se batia. Se debatia. 
O céu era vermelho e machucava. Lúcia queria pintá-lo de anil. Lúcia queria conhaque. Lúcia queria dormir.
Rasgava a pele e via o sangue lhe colorindo os dedos. Implorava  pro bicho ir embora. Se feria ou feria aquilo? Tanto fazia, se os dois eram maus. Onde estava o vinho? Onde estavam os calmantes? Onde estava o carinho, os lençóis brancos, o pai, a maçaneta da porta? O que fizera com a penteadeira da bisavó, por que lhe despedaçaram os bibelôs? Estava tudo destruído. Como se tivesse nascido da caixa de Pandora. Lá estava Lúcia, a rolar em seu colchão, a sangrar em seu travesseiro, fazia com a lâmina mais uma inscrição: "normal". Quantas cicatrizes mais seriam preciso? Que corpo de mulher ela teria?
Só queria paz.
E se embalava em sua própria dor até que os remédios lhe permitissem adormecer.