1.2.12

(NÃO) PERTURBE

E se - por acaso - você entrar sem bater e me pegar no pulo? Vai encontrar os fundos das canecas borrados de chá e de café, vai me encontrar enquanto visto meu sorriso mais desprendido e escondo as tralhas no armário, enquanto internizo e organizo minhas desordens. E se encontrar os filmes pausados, os livros que eu li pela metade e as discografias que eu fiquei de ouvir e nunca terminei, e se. E se você entrar sem bater e vir que eu ainda escondo os medos debaixo da cama? Entrar sem bater e encontrar meu peito escancarado e – deus que me livre! – enxergar lá dentro toda a angústia nele instalada, descobrir minhas veias entupidas de paranóia. Enquanto eu troco os lençóis e rasgo as páginas de rascunho que eu deixei pela metade. E se, e quando descobrir que eu me agarro aos meus temores, que me habituei aos meus tremores, que eu deságuo em lágrimas nas noites de tédio, que teço teias de tramas e dramas nas horas de solidão? Vai encontrar os cabelos cortados pelo chão, os frascos de remédios em cima da cômoda, as lâminas que ainda estão ali guardadas (só para o caso de); e quando? Se souber que revivo romances e me engano por pouco e que fujo e que volto e tropeço vezenquando mesmo sabendo das pedras no caminho... Também há meu desamor-próprio, há que eu preciso sempre de um abraço forte, que todo mês de Agosto eu me afogo nas tempestades em garrafas de cerveja e que nesses tempos minhas cicatrizes doem. E se você entrar sem bater? E se alguém entrar sem bater, meu Deus, e dar de cara ali com toda a minha demência, minha farsa, e toda emoção que eu escolho não mostrar? Vai fechar a porta, recomeçar, fingir que não viu nada e bater? Deixar tudo aberto e correr? Queira o céu que esse dia seja bem vindo. Queira o céu que você entre e me ajude a limpar a alma. Queira o céu.

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