1.2.15

curupira

Meio bicho meio gente eu ainda me lembro de uma infância correndo nua por aí, os cabelos os pés enlameados, os joelhos ralados. "Feito uma selvagem", diziam, "não adianta, é o sangue de índia". Nunca fui grande fã de sapatos, me encantava pelas histórias dum caboclo que vivia no fundo do riacho e devorava os canoeiros ousados. Me jogava sem medo naquelas águas e nunca soube nadar. As perninhas magrelas da cor da canela eram tortas feito as de um curupira. Durante oito anos fui a mais feliz das crianças e acreditava que um dia seria levada por um bando de fadas pra viver num reino sem concreto e sem gente grande onde toda manhã eu beberia groselha e adormeceria no meio dos gatos. Eu nunca tive medo de trovão... pulsão de morte. Aqui a gente detesta Freud. O grandessíssimo filho de uma puta era um ressentido que adorava explicar as coisas as quais não lhe competem! Virei gente grande, que pesadelo, estou cercada de concreto. Tenho um emprego e tenho que usar sapatos. As fadas, minhas amigas, nunca vieram me buscar, não sei ao certo o porquê. Detesto groselha. Às vezes eu choro muito e bebo bastante cerveja, nunca mais tomei banho de rio, eu bêbada abraço a privada vomito vomito vomito até a bile meu deus como sou péssima. Pulsão de morte hein Freud seu tremendo imbecil. O monte de comprimidos que eu engulo dia após dia pra conviver em sociedade civilizadamente: fixação oral. Eu não quero conviver civilizadamente, vá a merda tudo isso que chamam de civilização. Me lembro bem, eu era uma SELVAGEM. Queria ser a cabocla que devora os canoeiros. Que horror o modo como as coisas funcionam, você está ali brincando de ciranda e de repente seus ossos se esticam, nos cobrem com panos que não deixam a gente correr direito, crescem pêlos pelo nosso corpo e a gente vai ficando igualzinha aquelas pessoas que só sabiam nos dizer "não". Isso é terrivelmente triste. Um dia vi minha imagem refletida no espelho e eu já tinha seios e quadris. Dei um soco na cara daquela menina estranha. Cinco cacos de vidro e nenhuma gota de sangue, o sangue escorria era entre as minhas pernas.
Quando eu ainda era uma criança, as minhas amigas mal podiam esperar pra crescer. Disseram pra elas que ser grande era muito legal. Eu? Eu nunca acreditei nessa conversa fiada.

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