1.9.11

Tudo está bem quando acaba bem

Chegava em casa após um dia cansativo no consultório e desabava na poltrona de couro falso da sala. Você estava sentado ao piano preto e velho como o Gênesis, que compramos usado.  Alto, cachos escuros, olhos verdes e mãos grandes de dedos compridos que corriam com agilidade pelas teclas empoeiradas, a ansiedade fazendo-te errar as notas vezenquando (confesso que eu nem sequer percebia). Eu nunca soube distinguir a nona sinfonia da quarta, ou Beethoven de Mozart, então te implorava que tocasse para mim o tema d’A Bela e A Fera. Você me atendia e eu cerrava os olhos, sorrindo e cantando a letra quase num sussurro. O “pequeno” Muffin – nosso gato gordo e amarelo – se enroscava nos meus calcanhares e ronronava, satisfeito, quando eu lhe coçava atrás das orelhas. Depois de toda uma tarde proferindo a cura pela palavra, como a boa psicanalista que eu tentava ser, eu era submetida à sua terapia de cura pela música – sua música, amadora, que eu adorava! Me levantava e caminhava em sua direção, envolvia tua cintura com meus braços gelados e te beijava a nuca. Gostava quando você se arrepiava ao meu toque e murmurava “Catarina...” com um esboço de sorriso nos lábios, meio torto para o canto direito. E não parava de tocar, incessante e aos tropeços. Ao fim da música, me beijava várias vezes, pelo rosto inteiro – olhos, maçãs, testa, queixo, boca... –, e palmas das mãos e ombros.
Há dezoito anos atrás, era essa a nossa fantasia sobre hoje. Lembra, Valentim? Mas agora você está sentado do outro lado da mesa, há um anel dourado na sua mão esquerda e meus dedos permanecem completamente nus, como sempre estiveram. E nunca me tornei a psicanalista bem-sucedida que imaginávamos que eu seria, embora haja um divã ao lado da cama que divido com minha bela e talentosa jornalista recém-formada, e eu dê aulas de psicanálise em uma universidade particular. Você, afinal, se tornou o biomédico que sempre desejou, e admito (com certo embaraço) que ainda não sei bem o que um biomédico faz. Agora você está me dizendo o quanto eu estava bonita naquele vestido cor-de-rosa de madrinha, no seu casamento,e segura as minhas mãos enquanto diz isso. Somos grandes amigos agora, acho sua esposa adorável (aliás, mande lembranças à Alice!) e se dá muito bem com minha Susanna, que ela também acha adorável. Nós quatro costumamos freqüentar os botecos da Paulista em encontros bregas de casaisinhos, e Susanna sempre dirige na volta porque nós outros estamos um tantinho embriagados. Minha namorada é mesmo adorável (eu adoro essa palavra e não me canso de repeti-la), uma pena que deteste gatos, mas estamos contentes com nossos vários vira-latas. Enfim, sou oficialmente uma escritora publicada, ainda que miserável e não renomada, e parei de fumar no último outono. É Setembro e está tocando Los Hermanos ao fundo (Último Romance!) e o chopp está acabando – Garçom! Mais dois! – e estamos dando risada dos nossos planos adolescentes bobos.
E como já dizia o velho do conto, e nunca me esqueço: “tudo está bem quando acaba bem.”

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