23.5.11

DEVANEIOS AVULSOS DE UMA JOVEM SEM GERAÇÃO

Eu chorava. Minha vida era perfeitamente razoável, para não dizer muito boa, mas chorava. Chorava por mendigos de dedos dos pés enregelados pelo frio que dormiam em calçadas duras, pelos filhotinhos sarnentos que seriam sacrificados no canil, mães mortas ao dar a luz, bebês órfãos sem seios fartos que os amamentasse. Eu pranteava a Segunda Guerra: lamentava pelos corpos das crianças judias e até mesmo pelas crianças alemãs que foram tão mal ensinadas. Me sentia triste pela morte das princesas em revoluções, assim como me sentia triste pelo povo injustiçado. Chorava. Chorava pelas bruxas queimadas na fogueira, chorava também por um Cristo cruxificado, por pagãos perseguidos, pela destruição da civilização dos Incas, dos Maias, dos Astecas, chorava pelos índios guaranis que tiveram sua ingenuidade tão facilmente corrompida por Europeus. Sentia misericódia do diabo a ser condenado ao inferno e meu coração se desfazia ao pensar em santos católicos nos quais eu nem mesmo acreditava. Talvez eu fosse louca.
Comprava meu café expresso, forte, sem açúcar, fervendo num copo plástico descartável, abria um livro grosso de romance e lia sentada num banco de meia-lua sob o sol. E chorava por dentro. Eu queria um mundo cheio de livros, de céu azul cheio de nuvens brancas alaranjadas, sol, neblina, ruas de paralelepípedos amarelos, lírios e tulipas pelos cantos e ar com cheiro de pão quentinho. Que todo mundo fosse Maria, José, João, Ana, Sofia, Luíza, Flora, Rosa - sem nomes compostos, sem sobrenomes, sem posses, sem guerras, sem mortes trágicas. Queria ser amada e queria que todos fossem amados, também. Queria ter cinco anos de novo, e descer a pracinha do Rudge sentada num skate, roubar margaridas da portaria do condomínio e brincar no parquinho com crianças pobres de rua. Queria trazer para casa todos os animaizinhos abandonados, que os gatos e cães mais mansos dormissem na minha cama. Queria passar as manhãs de inverno assistindo desenhos e comendo nozes na cama de meus pais. Queria que meu pai penteasse meus cachos, que mamãe me fizesse tranças, queria alimentar minhas bonecas e correr atrás de borboletas que eu acreditava (e ainda acredito) serem fadas.
Mas acima de tudo, queria chorar.

Um comentário:

  1. Me lembrou Cainho Fernando de Abreu, aqui vai um trecho (porque nunca consegui achar a continuação - mas sei que existe):
    “Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo.” Não sei se me lembrou só pelo fato de chorar ou porque me indentifiquei tanto com seu texto - novidade - que me veio a cabeça que quando estava assim, como você, o Caio sempre me confortava.
    Lindo texto. Linda você.

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