16.10.11

Linha 503

(Não tão) de vez em quando, Camélia ainda tomava o metrô 503, apenas pelo puro prazer da lembrança, movida por uma nostalgia impulsiva. Durante todos os trinta e sete minutos do trajeto, se entregava de alma àqueles diálogos (e talvez possíveis amizades, até romances!, por que não?) subterrâneos. Falava de toda e qualquer banalidade ou não que lhe ocorresse: da garoa que ameaçava em trovões, das eleições que se aproximavam, que as entradas pro cinema estavam muito caras, do preço do bilhete do transporte que subia, da cidade que estava crescendo - haviam carros demais e cada vez menos bicicletas. A mocinha bonita de cabelo chanel, olhos castanhos grandes e saia floral rendada disse que tinha uma bicicleta e (essa próxima parte ela falou rindo) que era quase uma ciclista profissional. Ela tinha braços e pernas compridos e magros, um furo bem pequeno na camiseta de algodão. Camélia falou da claustrofobia que dava de andar em trens cheios, que voltava sempre de bicicleta pra casa, se pudesse (o que era mentira, porque Mélia era uma preguiçosa). A camiseta da menina tinha estampada a cara de Audrey Hepburn como Holly Golightly, então Camélia decidiu chamá-la mentalmente de "Bonequinha de Luxo". Pois bem, Bonequinha tinha um olhar cativante e uma risada gostosa, confessou que morria de preguiça de pedalar todo dia de volta pra casa. Levava consigo um vaso de mudas de orquídeas, flores que Camélia adorava. Bonequinha de Luxo mostrou as orquídeas - disse que adorava camélias, também. E o trem chega ao fim da linha.
Sob a luz, o castanho daqueles olhos enormes se tornava âmbar (ou até num verde amendoado, se batia um raio de sol). 'Té mais ver, despediu-se "Holly", que morava vizinha daquela estação. Até! Tudo isso sem dizer nomes, cor favorita, sem saber se ela preferia Chico ou Caetano - ou nenhum dos dois. Tudo isso numa daquelas viagenzinhas que Mélia só fazia pra se lembrar de José. Acendeu seu cigarro e ficou esperando: ainda tinha que pegar  um ônibus; não morava ali por perto. Qualquer dia, novamente pelo prazer da nostalgia, voltava no 503 e falava do tempo, da economia, política, procurava por Zé, procurava a menina Holly - aí perguntava o nome verdadeiro dela! Dizia que se chamava Camélia, como a flor. Ou inventava qualquer coisa... quem sabe!

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